‘Novo Collor’ Milei ganha reputação em meio a medidas autoritárias

Analistas ressaltam paralelos entre a situação presente na Argentina e o Brasil durante a época da hiperinflação. Eles advertem que o termo impeachment está começando a circular entre a população e grupos sociais, sugerindo crescente insatisfação e agitação.

O recém-empossado presidente argentino, Javier Milei, está prestes a completar um mês no cargo nesta quarta-feira (10). Apesar do curto período na Casa Rosada, suas políticas ultraliberais já resultaram em uma série de medidas impopulares. Isso incluiu um aumento de 60% nos preços dos combustíveis, a suspensão dos empréstimos da China ao país e a introdução do escambo como meio de pagamento.

Estas ações têm causado indignação na população, mas, devido a uma outra medida implementada por Milei, os protestos nas ruas foram criminalizados, podendo acarretar na revogação de benefícios sociais para os manifestantes.

Especialistas, entrevistados expressam preocupação com a direção que Milei está levando a Argentina. Eles apontam para suas medidas impopulares e, segundo eles, autoritárias, indicando que tais decisões podem antecipar o término de seu mandato.

Fabio Pereira de Andrade, especialista em economia, administração pública e governo, e professor de relações internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), observa que é notável o fato de o governo Milei não ter adotado a estratégia comum de outros líderes após vencerem eleições. Em vez disso, não se distanciou das promessas radicais feitas durante a campanha e manteve um discurso agressivo, contrariando a expectativa de suavizar a abordagem para se ajustar à realidade.

Estamos diante de um governo que ganhou com um discurso de extrema-direita e que dá todos os sinais, nesses primeiros 30 dias, que está disposto a fazer um governo muito alinhado a essa agenda ideológica da extrema-direita […] O que chama atenção é isso, o que foi prometido durante a campanha está sendo mais do que entregue, em que pese essas medidas serem, aos olhos de analistas, de difícil implementação.”

O professor destaca a inclinação autoritária de Milei e ressalta que o presidente argentino está adotando de maneira significativa os princípios da extrema-direita ao unir o liberalismo econômico extremo com elementos conservadores, incluindo nuances autoritárias. Ele ilustra essa preocupação citando o plano de Milei de convocar um plebiscito caso seu conjunto de medidas, conhecido informalmente como “decretaço”, não seja aprovado pelo Congresso. Esta atitude sinaliza uma postura decisiva e inflexível, desafiando os processos legislativos e a tradicional tomada de decisões democráticas.

“Geralmente, a convocação de plebiscito para você discutir grandes temas pode ser visto, se isso for feito de maneira ponderada, se isso não for feito de maneira recorrente, como um instrumento que aumenta, basicamente, a participação dos cidadãos, aquilo que em ciência política a gente chama de accountability. Porém, a gente tem visto a prática, seja em países governados pela extrema-direita, seja países governados pela extrema-esquerda, de abusar do sistema de plebiscito para fazer o quê? Enfraquecer os outros dois poderes, enfraquecer o Legislativo e enfraquecer o Judiciário.

Ele acrescenta que o decretaço de Milei, que tem 664 artigos, traz o estabelecimento de plenos poderes ao presidente, até o dia 25 de dezembro, podendo a medida ser prorrogada por mais dois anos, algo que “altera poderes e desequilibra o balanço de poder entre Judiciário, Legislativo e Executivo”.

A Argentina se tornará uma ditadura?

Andrade expressa uma preocupação séria ao analisar as ações de Milei, indicando que elas apontam para uma trajetória preocupante rumo a um regime ditatorial na Argentina. Essa possibilidade levanta temores de pedidos de impeachment e agitações políticas, agudizando uma região que tem enfrentado históricos de ditaduras e desafios para consolidar a democracia.

Ele ressalta o histórico na América Latina de interrupções governamentais frequentes, especialmente quando certos governos tomam medidas específicas. Este padrão causa inquietação entre analistas internacionais há algum tempo, sendo exemplificado pela rápida queda do presidente Fernando Lugo no Paraguai, seguida por uma série de outras interrupções de governos no continente. Posteriormente, muitas vezes, essas ações não encontram justificativa substancial ao serem examinadas mais detalhadamente.

O especialista destaca que a percepção do sistema democrático na América Latina é fortemente influenciada pela situação econômica, sugerindo que as medidas adotadas pelos governos podem moldar a estabilidade política e a confiança na democracia na região.

“O Latino Barômetro já aponta que quando a economia vai bem nos países da América Latina, geralmente, a quantidade de pessoas que concordam 100% com a frase ‘A democracia é o melhor regime independentemente da situação econômica’ é de 60%. Quando a economia vai mal, muitas vezes se registra [um percentual] abaixo de 50%”, diz Andrade.

“Se percebemos uma tendência na população em aceitar regimes com traços autoritários, seja em ideologias de esquerda ou de direita, é inegável que estamos testemunhando o surgimento de líderes e movimentos que buscam restringir o funcionamento democrático. Isso, sem dúvida, é motivo de grande preocupação”, reforça o especialista.

E quem leva a culpa dessa inflação na Argentina?

Andrade destaca que Milei assumiu uma crise econômica que nenhum governo anterior foi capaz de resolver.

“Os governos [de Néstor e Cristina] Kirchner e de [Alberto] Fernández foram altamente incompetentes em lidar com a questão econômica e apresentar inflação. Obrigar a população argentina a conviver com inflação de três, quatro, dígitos é inviável.”
Mulher usa máscara e segura uma placa com os dizeres em espanhol "Estou procurando meus direitos, alguém os viu?", durante protesto contra medidas relativas às políticas culturais do governo do Milei, em Buenos Aires. Argentina, 4 de janeiro de 2024
© AP Photo / Natacha Pisarenko

Contudo, ele defende que um acordo proposto pelo ex-ministro da Economia de Fernández, Sergio Massa, que concorreu à presidência, poderia ter sido benéfico para a Argentina enfrentar os impactos da crise. Isso, claro, se o país tivesse optado por permanecer no BRICS e mantido uma relação sólida com a China.

“O Sergio colocou a Argentina na nova Rota da Seda, o que faz com que a Argentina esteja em condições de receber investimentos de empresas chinesas, no que tange à infraestrutura, comunicação. E a gente está falando de muito dinheiro mesmo”, explica Andrade.

Ele acrescenta enfaticamente que no término do governo Fernández, Massa estabeleceu a Argentina como um ponto focal onde transações comerciais poderiam ocorrer através tanto do SWIFT quanto do CIPS, o sistema interbancário chinês. Isso, segundo Andrade, concede ao país a capacidade de efetuar operações financeiras remuneradas em renminbi, a moeda digital chinesa, uma moeda que tem despertado grande interesse, inclusive entre os bancos centrais que buscam expandir suas reservas.

No entanto, ele destaca com veemência que a estratégia de Milei de excluir o país do BRICS para buscar acordos diretos com a China, ou até mesmo para distanciar a Argentina de Pequim em busca de alternativas, pode trazer sérios prejuízos à nação.

“Eu acredito que o efeito econômico, em termos negativos [do possível distanciamento com a China], seria mais direto, e acredito que isso, inclusive, provocaria alguns efeitos políticos de perda de apoio por parte do Milei.”

Além disso, o professor adverte enfaticamente que se Milei optar por afastar a Argentina do Brasil, isso criará uma enorme responsabilidade para o governo argentino de construir novas conexões e alternativas econômicas que serão extremamente desafiadoras.

Ele ressalta que é altamente improvável que os Estados Unidos, país ao qual Milei busca se aproximar, tenham qualquer intenção de ocupar o lugar do Brasil ou da China no contexto da economia argentina.

“Os Estados Unidos não vão querer. Nem é questão de querer, a questão dos Estados Unidos é ter outros desafios a serem resolvidos que não permitirão [ao país] ocupar o espaço que poderia ser deixado pelo Brasil e a China […]. A Argentina, geopoliticamente, com todo respeito aos nossos irmãos, não é tão importante a ponto de os Estados Unidos mobilizarem recursos econômicos para ocupar o lugar desses dois atores.”

O que Esperar do Governo Milei?

Ana Prestes, socióloga, analista internacional e doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), descreve o primeiro mês do governo Milei como um turbilhão.

“E mesmo que muitos já previssem […] um choque liberal sob seu comando, suas ações têm sido surpreendentemente intensas e contraintuitivas, alinhadas ao que ele prometeu em campanha, mas ainda mais impactantes.”

Ela destaca que, apesar do curto período no poder, pesquisas indicam que alguns eleitores já manifestam sinais de arrependimento por terem apoiado Milei, especialmente após a controvérsia em torno do chamado ‘decretaço’.

“Tem várias pesquisas na praça [que apontam essa tendência] e tem uma pesquisa que está falando que ele perde um ponto de apoio a cada dia que passa.”

Indagada sobre se a Argentina está enfrentando uma realidade semelhante à vivida pelo Brasil durante a hiperinflação, Ana afirma que o panorama no país vizinho se assemelha ao início do mandato de Fernando Collor.

“Aquela questão do conflito da poupança, medidas ao mesmo tempo combinadas, medidas autoritárias com medidas liberalizantes, desobrigando o Estado de algumas de suas funções. Eu acho que o mais próximo que teríamos [de Milei] seria o caso Collor.”

Ela adverte que, da mesma forma que ocorreu com Collor, Milei enfrenta a possibilidade de não conseguir terminar seu mandato.

“Inclusive já se fala a palavra ‘impeachment’ na mídia, entre os movimentos já se fala. Isso não quer dizer que isso vai acontecer agora, proximamente, mas quer dizer que há uma situação, sim, de instabilidade nesse início de governo do Milei.”

A especialista em ciência política argumenta que muitas das medidas incluídas no conjunto de decretos de Milei, especialmente aquelas relacionadas à diminuição da intervenção do Estado na esfera social, não são vistas como necessárias.

“Retirar o suporte que as pessoas recebem do Estado, especialmente no âmbito social, só as tornará mais vulneráveis e aumentará seu sofrimento.”

Além disso, ela destaca paralelos com o governo de Fernando de la Rua, que enfrentou um processo de impeachment em 2001.

“O governo [Fernando] de la Rua, que tem algumas semelhanças para essa questão econômica, bastante, de crise econômica profunda, durou um ano. Então eu vejo, sim, se continuar nessa instabilidade, se continuar nessa aposta cada vez mais alta na radicalização, há chance, sim, de esse governo não prosseguir, não cumprir o seu termo.”

Ela destaca que, na época, a Argentina também passou por uma situação bem confusa, e que os protestos contra o governo levaram Fernando de la Rua a ter de deixar a Casa Rosada de helicóptero.

“Foi um período bem confuso. Os grandes cacerolaços, os grandes panelaços, as ruas tomadas […], as pessoas indo nos bancos, tentando tirar todo o dinheiro que tinham. Foram dias dramáticos, pessoas morreram.”

O que pode acontecer se a Argentina Não Entrar no BRICS

Ana Prestes avalia que Milei está cometendo uma série de erros na arena internacional.

“Sua saída do BRICS, na minha opinião, foi um grande equívoco. Além disso, agora ele está recebendo uma delegação do FMI para negociar a enorme dívida argentina, que foi herdada do governo Macri, ultrapassando os US$ 70 bilhões (aproximadamente R$ 341 bilhões).”

Segundo a especialista, ao escolher não se juntar ao BRICS, Milei “isolou a Argentina de uma esfera que é crucial e está em notável crescimento”.

“Hoje o PIB reunido dos países do BRICS, com o novo BRICS, o BRICS +, já passa o PIB das economias do G7. Ou seja, já tem uma importância econômica considerável e com uma possibilidade de negociação muito menos draconiana, muito mais plausível, do que com o FMI, por exemplo. Então acho que foi um grande erro do Milei. Mas também a gente entende que, de acordo com o projeto dele, ele quer fazer um alinhamento com os Estados Unidos. E para fazer um alinhamento com os Estados Unidos, ele precisa se afastar da China e ainda passar para os Estados Unidos essa imagem de que ele está afastando a China da América Latina.”

E a Proibição de Protestos da sociedade?

Indagada sobre a proibição das manifestações nas ruas pelo governo Milei, com a consequência de perder benefícios sociais, Ana Prestes critica a medida como altamente autoritária. Ela adverte que, em uma sociedade politizada como a Argentina, essa possivelmente foi uma das piores decisões de Milei, podendo ter um efeito contrário ao desejado.

“Eles [integrantes do governo Milei] chegaram a propor que qualquer reunião de mais de três pessoas tenha que passar por escrutínio do Estado, que seja comunicado ao Estado. Tem total ares de autoritarismo, de medidas ditatoriais”, afirma a especialista.

“Na Argentina, um país altamente engajado e politizado, onde a cultura de rua e manifestações é intrínseca, quase todas as questões encontram espaço em protestos. Todo o processo de redemocratização e justiça transitória na Argentina foi assegurado por essa mobilização da sociedade. Tentar reprimir as manifestações será um estímulo para mais protestos, especialmente se considerarmos bem a dinâmica argentina”, completa.

A especialista aponta a proposta do presidente Milei para conceder plenos poderes por até dois anos, prevista no decretaço, como a medida mais controversa.

“Essa concessão de plenos poderes, uma vez aprovada, poderia conferir ao Executivo uma autoridade extraordinária, quase se equiparando a um estado de sítio. Acredito ser altamente improvável algo dessa natureza ser aprovado pelo Congresso, já que isso implicaria na retirada de poderes, inclusive do Parlamento. […] Ao restringir outros poderes e concentrar excessivamente poder no Executivo, corre-se o risco de se aproximar do despotismo.”

Porque Milei ganhou os votos dos mais jovens?

A juventude argentina representa uma significativa parcela do eleitorado de Milei, algo que tem surpreendido os analistas, dado o tradicional alinhamento dessa faixa etária com outras forças políticas.

Ana Prestes enfatiza que aproximadamente 60% da população entre 16 e 24 anos votou em Milei nas eleições presidenciais, destacando um forte engajamento dos jovens na campanha do presidente. Ela atribui essa tendência ao cansaço generalizado da população diante da crise, refletindo também a busca por uma alternativa política.

“A juventude vota por mudança. Tem um fenômeno de cansaço social e um esgotamento social importante com as condições econômicas em que a Argentina se encontrava e agora se encontra ainda mais. Então, a falta de perspectiva para a juventude gerou um voto de protesto, […] um voto que a gente qualifica assim: ‘Que vá todo mundo embora, vamos votar nesse maluco aqui’. Tem o elemento, também, de que os mais jovens, obviamente, não têm a vivência da construção da redemocratização, […] não percebem, às vezes, a ameaça aos próprios direitos que agora vão começar a perceber.”

Ela observa que a geração que desafiou a elite política e optou por apoiar Milei é aquela em que “os jovens estão retornando à casa dos pais devido à explosão dos preços dos aluguéis”.

“Os custos dos aluguéis, dos transportes e dos alimentos estão disparando. […] Quando recebem o salário, as pessoas correm para fazer compras imediatamente, pois no dia seguinte os preços já podem estar diferentes. É essa juventude que se rebelou diante dessa situação, sem ver perspectivas em Sergio Massa, que, por sinal, foi ministro da Economia.”

Ela acrescenta que o retorno ao sistema de trocas diretas no país, como a possibilidade de pagar aluguéis com produtos como leite, representa “uma simplificação, um retrocesso em termos de garantias e direitos”.

“Dá uma sensação de abandono e de algo bagunçado que está generalizado. E é isso, os relatos que a gente tem de lá são esses, que as pessoas estão sem entender o que está acontecendo, uma sensação de desordem.”

Ela afirma que toda essa instabilidade torna ainda mais complicada a retomada econômica e de laços de confiança com outros países.

Dolarizar a economia vai resolver?

Quando questionada sobre a proposta do governo Milei de dolarizar a economia como solução para a crise argentina, Ana Prestes afirma que essa medida não teria impacto positivo na atual situação do país. Em sua visão, uma abordagem mais eficaz seria buscar uma maior integração e alinhamento com as nações do Sul Global.

“Eu acho que o mundo está numa onda de desdolarização e não de dolarização. Tem que tentar fortalecer a economia, sua moeda, dialogar nesse novo mundo multipolar, em que o dólar vai deixando também de ser o centro, com novos parceiros, parceiros do Sul Global. Eu estou nessa linha do BRICS, de fortalecer a integração sul-americana, latino-americana”, conclui a especialista.
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